Carta de Lula denuncia a campanha autoritária para excluir o
PT do processo político brasileiro
Em carta enviada esta semana aos
governantes e ex-governantes com os quais manteve relações, durante e depois de
seu governo, o ex-presidente Lula denunciou o golpe parlamentar contra a
presidenta Dilma Rousseff e a campanha dos golpistas e da mídia brasileira para
excluir do processo político, por meios arbitrários, o PT e o próprio
Lula.
"As forças conservadoras
querem obter por meios escusos aquilo que não conseguiram democraticamente:
impedir a continuidade e o avanço do projeto de desenvolvimento e inclusão
social liderado pelo PT", diz o ex-presidente na carta.
Em oito anos no governo, Lula
teve 168 encontros com chefes de estado e de governo em dezenas de países,
recebeu governantes estrangeiros em 232 ocasiões, além de ter participado de 84
reuniões de cúpula multilaterais. Entre 2011 e 2015, Lula participou de 132
encontros com governantes e ex-governantes, mantendo sua intensa agenda de
diálogo internacional.
No documento aos governantes e
ex-governantes, Lula afirma:
"Querem criminalizar os movimentos
sociais e, sobretudo, um dos maiores partidos de esquerda democrática da
América Latina, que é o PT. Denúncias
contra líderes de partidos conservadores são sistematicamente abafadas e arquivadas
enquanto acusações semelhantes a qualquer personalidade do PT tornam-se de
imediato, à revelia do devido processo legal, condenação irrevogável na maior parte
dos meios de comunicação."
"Se a justiça for imparcial,
as acusações contra mim jamais prosperarão. O que não posso aceitar são os atos
de flagrante ilegalidade e parcialidade praticados contra mim e meus familiares
por autoridades policiais e judiciárias. É inadmissível a divulgação na tv de
conversas telefônicas sem nenhum conteúdo
político, a coação de presos para fazerem denúncias mentirosas contra mim em
troca da liberdade, ou a condução forçada, completamente ilegal, ocorrida em
março último, para prestar depoimento do qual eu sequer tinha sido
notificado."
"Nada me fará abrir mão,
como sabem as lideranças de todo o mundo com as quais trabalhei em harmonia e
estreita cooperação -- antes, durante e depois dos meus mandatos presidenciais
– do compromisso de vida com a construção de um mundo sem guerras, sem fome,
com mais prosperidade e justiça para todos."
Leia a íntegra da carta
São Paulo, 25 de agosto de 2016.
Caro
Presidente,
Dirijo-me
ao senhor para informá-lo da gravíssima situação política e institucional que
vive o Brasil, país que tive a honra de presidir de 2003 a 2010.
Tomo a liberdade de escrever-lhe em nome do respeito e da amizade que
existe entre nós, pelos quais sou muito grato.
Orgulho-me de ter conseguido, apesar da
complexidade inerente às grandes democracias e dos problemas crônicos do
Brasil, unir o meu país em torno de um projeto de desenvolvimento econômico com
inclusão social, que nos fez dar um verdadeiro salto histórico em termos de
crescimento produtivo, geração de empregos, distribuição de renda, combate à
pobreza e ampliação das oportunidades educacionais.
Por meios pacíficos e democráticos,
fomos capazes de tirar o Brasil do mapa da fome no mundo elaborado pela ONU,
libertamos da miséria mais de 35 milhões de pessoas, que viviam em condições
desumanas, e elevamos outras 40 milhões a patamares médios de renda e consumo,
no maior processo de mobilidade social da nossa história.
Em 2010, como se sabe, fui sucedido pela Presidenta Dilma Rousseff,
também do Partido dos Trabalhadores, que havia dedicado sua vida à luta contra
a ditadura militar, pela democracia e
pelos direitos da população pobre do nosso país.
Mesmo enfrentando um cenário econômico
internacional adverso, a Presidenta Dilma conseguiu manter o país no rumo do
desenvolvimento e consolidar os programas sociais emancipadores, prosseguindo
na redução das enormes desigualdades materiais e culturais ainda existentes na
sociedade brasileira.
Em 2014, a Presidenta Dilma foi reeleita com 54 milhões de votos,
derrotando uma poderosa coalizão de partidos, empresas e meios de comunicação
que pregava o retrocesso histórico do país, com a redução de importantes
programas de inclusão social, a supressão de direitos básicos das classes
populares e a alienação do patrimônio público construído com o sacrifício de
inúmeras gerações de brasileiros.
A coalizão adversária, vencida nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014, não
se conformou com a derrota e desde a proclamação do resultado procurou
impugná-lo por todos os meios legais, sem alcançar nenhum êxito.
Esgotados os recursos legais, no
entanto, em vez de acatar a decisão soberana do eleitorado, retomando o seu
legítimo trabalho de oposição e preparando-se para disputar o próximo pleito
presidencial – como o PT sempre fez nas eleições que perdeu –, os partidos
derrotados e os grandes grupos de mídia insurgiram-se contra as próprias regras
do regime democrático, passando a sabotar o governo e a conspirar para
apossar-se do poder por meios ilegítimos.
Ao longo de todo o ano de 2015, torpedearam de modo sistemático os
esforços do governo para redefinir a política econômica no sentido de resistir
ao crescente impacto da crise internacional e recuperar o crescimento
sustentável. Criaram um clima artificial de impasse político e institucional,
com efeitos profundamente danosos sobre a vida do país, contaminando o ambiente
de negócios, deixando inseguros produtores e consumidores, constrangendo as
decisões de investimento. No afã de inviabilizar o governo, apostaram contra o
país, chegando até mesmo a aprovar no parlamento um conjunto de medidas
perdulárias e irresponsáveis destinadas a comprometer a estabilidade fiscal.
E,
finalmente, não hesitaram em deflagrar um processo de impeachment
inconstitucional e completamente arbitrário contra a Presidenta da República.
Dilma Rousseff é uma mulher íntegra, cuja honestidade pessoal e pública
é reconhecida até pelos seus adversários mais ferrenhos. Nunca foi nem está
sendo acusada de nenhum ato de corrupção. Nada em sua ação governamental pode
justificar, sequer remotamente, um processo de cassação do mandato que o povo
brasileiro livremente lhe conferiu.
A Constituição brasileira é categórica a esse respeito: sem a existência
de crime de responsabilidade, não pode haver impeachment. E não há nenhum –
absolutamente nenhum – ato da Presidenta Dilma que possa ser caracterizado como
crime de responsabilidade. Os procedimentos contábeis utilizados como pretexto
para a destituição da Presidenta são idênticos aos adotados por todos os
governos anteriores e pelo próprio vice-presidente Michel Temer nas ocasiões em
que este substituiu a Presidenta por razão de viagem. E nunca foram motivo de
punição aos governantes, muito menos justificativa para derrubá-los. Trata-se,
portanto, de um processo estritamente político, o que fere frontalmente a Constituição
e as regras do sistema presidencialista, no qual é o povo que escolhe
diretamente o Chefe de Estado e de Governo a cada quatro anos.
As forças conservadoras querem obter por meios escusos aquilo que não
conseguiram democraticamente: impedir a continuidade e o avanço do projeto de
desenvolvimento e inclusão social liderado pelo PT, impondo ao país o programa
político e econômico derrotado nas urnas. Querem a todo custo comandar o Estado
para apossar-se do patrimônio nacional – como já começa a acontecer com as
reservas petrolíferas em águas profundas –
e desmontar a rede de proteção aos trabalhadores e aos
pobres que foi ampliada e consolidada
nos últimos treze anos.
As mesmas forças que tentam arbitrariamente derrubar a Presidenta Dilma,
e implantar a sua agenda antipopular, querem também criminalizar os movimentos
sociais e, sobretudo, um dos maiores partidos de esquerda democrática da
América Latina, que é o PT. E não se trata de mera retórica autoritária: o
PSDB, principal partido de oposição, já apresentou formalmente uma proposta de
cancelamento do registro do PT, com vistas a proibi-lo de existir. Temem que,
em 2018, em eleições livres, o povo brasileiro volte a me eleger Presidente da
República, para resgatar o projeto democrático e popular.
A luta contra a corrupção, que é uma mazela secular do Brasil e de
tantos outros países, e deve ser combatida de modo permanente por todos os
governos, foi distorcida e transformada em uma implacável perseguição midiática
e política ao PT. Denuncias contra
líderes de partidos conservadores são sistematicamente abafadas e arquivadas
enquanto acusações semelhantes a qualquer personalidade do PT tornam-se de
imediato, à revelia do devido processo legal, condenação irrevogável na maior
parte dos meios de comunicação.
A verdade é que o combate à corrupção no Brasil passou a ser muito mais
vigoroso e eficaz a partir dos governos do PT, com o respeito, que antes não
existia, à plena autonomia do Ministério Público e da Polícia Federal no
exercício de suas atribuições; a ampliação do orçamento, do quadro de
funcionários e a modernização tecnológica dessas instituições e dos demais
órgãos de controle; a nova lei de acesso à informação e a divulgação das contas
públicas na internet; os acordos de cooperação internacional no enfrentamento
da corrupção; e o estabelecimento de punições muito mais rigorosas para
corruptos e membros de organizações criminosas.
Todos nós, democratas, interessados no aperfeiçoamento institucional do
país, apoiamos o combate à corrupção. As pessoas que comprovadamente tiverem
cometido crimes, devem pagar por eles, dentro da lei. Mas os juízes, promotores
e policiais também estão obrigados a cumprir a lei e não podem abusar do seu
poder contra os direitos dos cidadãos. As pessoas não podem ser publicamente
condenadas (e terem a sua reputação destruída) antes da conclusão do devido
processo legal, e menos ainda por meio do vazamento deliberado de informações
praticado pelas próprias autoridades com fins políticos. Uma justiça discriminatória
e partidarizada será fatalmente uma justiça injusta.
Eu, pessoalmente, não temo nenhuma investigação. Desde que iniciei a
minha trajetória política e, particularmente nos últimos dois anos, tive toda a
minha vida pública e familiar devassada – viagens, telefonemas, sigilo fiscal e
bancário –, fui alvo de todo o tipo de insinuações, mentiras e ataques
publicados como verdade absoluta pela grande mídia, sem que tenha sido
encontrado qualquer desvio na minha conduta ou prova de envolvimento em qualquer
ato irregular. Se a justiça for
imparcial, as acusações contra mim jamais prosperarão. O que não posso aceitar
são os atos de flagrante ilegalidade e parcialidade praticados contra mim e
meus familiares por autoridades policiais e judiciárias. É inadmissível a
divulgação na tv de conversas
telefônicas sem nenhum conteúdo político, a coação de presos para
fazerem denúncias mentirosas contra mim em troca da liberdade, ou a condução
forçada, completamente ilegal, ocorrida em março último, para prestar depoimento
do qual eu sequer tinha sido notificado.
Por isso,
meus advogados entraram com uma representação no Comitê de Direitos Humanos das
Nações Unidas, relatando os abusos cometidos por algumas autoridades judiciais
que querem a todo custo me eliminar da vida política do país.
A minha trajetória de mais de 40 anos de militância democrática, que
começou na resistência sindical durante os anos sombrios da ditadura,
prosseguiu no esforço cotidiano de conscientizar e organizar a sociedade brasileira pela base,
até ser eleito como o primeiro
Presidente da República de origem operária, é o meu maior patrimônio e a ele
ninguém me fará renunciar. Os vínculos de fraternidade que construí com os
brasileiros e brasileiras na cidade e no campo, nas favelas e nas fábricas, nas
igrejas, nas escolas e universidades, e que
levaram a maioria do nosso povo a apoiar o vitorioso projeto de inclusão social e promoção da dignidade
humana, não serão cancelados por nenhum tipo de arbitrariedade. Da mesma forma,
nada me fará abrir mão, como sabem as lideranças de todo o mundo com as quais
trabalhei em harmonia e estreita cooperação -- antes, durante e depois dos meus
mandatos presidenciais – do compromisso de vida com a construção de um mundo
sem guerras, sem fome, com mais prosperidade e justiça para todos.
Agradeço desde já a generosa atenção que o senhor dedicou a esta
mensagem e coloco-me à disposição, como sempre estive, para qualquer
esclarecimento ou reflexão de interesse comum.
Reiterando o meu respeito e amizade, despeço-me
fraternalmente.
Luiz
Inácio Lula da Silva
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