Classificado em março de 2015
como “potencialmente” carcinogênico pela Agência Internacional de Pesquisas do
Câncer (IARC, em inglês), órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS), o
agrotóxico glifosato continua sendo livremente vendido em grande escala no
Brasil.
De acordo com dados do Ministério
da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic), obtidos pela Defensoria
Pública de São Paulo e o Observatório de Saúde Ambiental, a importação de
glifosato no Brasil saltou de 44 mil toneladas em 2011, para 129 mil toneladas
em 2015, o que representou um movimento de 491 milhões de dólares. Até agosto
de 2016, a importação de glifosato já alcançou 89 mil toneladas.
Desde 2008, o Brasil é o maior
consumidor de agrotóxicos do mundo, sendo que, somente o estado de São Paulo,
consome 4% de todo o agrotóxico produzido no planeta.
Em 2015, logo após a
classificação da OMS, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
informou, por meio de nota, que a revisão do uso do glifosato no Brasil teria
prioridade depois da divulgação do estudo da Agência Internacional de Pesquisas
do Câncer. A possível reavaliação do produto começou ainda em 2008, quando a
Anvisa contratou a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) para dar um parecer sobre o
utilização do agrotóxico. Na ocasião, os especialistas da Fiocruz condenaram a
aplicação de glifosato nas lavouras brasileiras, devido a pesquisas científicas
da época já indicarem o potencial cancerígeno do produto.
O glifosato é o ingrediente ativo
do herbicida roundup, patenteado pela Monsanto em 1974. Segundo a Agência
Internacional de Pesquisas do Câncer, o agrotóxico está ligado ao surgimento de
linfomas não-hodgkins, que incluem mais de 20 tipos diferentes de tumores.
A demora da Anvisa em reavaliar a
utilização do glifosato no Brasil não surpreende Marcelo Carneiro Novaes,
advogado e defensor público da cidade de São Paulo e região metropolitana. “No
Brasil, o fiscalizado domina o fiscalizador”, define, sem meias palavras.
Novaes aponta a imensa força do lobby do agronegócio no Congresso Nacional e
nas instituições do Estado como a causa da complacência dos órgãos públicos com
a venda, não só de glifosato, mas de uma série de outros agrotóxicos proibidos
em diversos países do mundo, como o malathion, acefato, paraquat e o 2,4-D.
“As pessoas querem ganhar
dinheiro a todo custo. Os interesses econômicos ditam o destino da nação, de
vida e de morte. Não dá para usarmos agrotóxicos proibidos em diversos países
sob o argumento de que é necessário para a economia”, afirma Marcelo Novaes.
Interesses difusos
Para o defensor público, o modelo
agroexportador está na formação do Estado brasileiro, gerando uma riqueza que,
no entanto, não é distribuída entre a população. “Isso é muito comum também em
outros países, onde a riqueza é apropriada pela elite, e no Brasil não é
diferente. As elites agrárias sempre tiveram muita força política.”
Marcelo Novaes pondera que o
Estado deveria buscar o interesse público, sem se confundir com os interesses
privados do capital e de quem detém os meios de produção. Mas, na prática, diz
ele, não é o que ocorre. “A influência da bancada ruralista é muito grande e
isso se evidencia na formulação de políticas públicas, o que gera uma distorção
entre o interesse da população e o interesse econômico”, avalia.
Segundo ele, a Anvisa tem poucos
funcionários para fazer a análise dos produtos. E mesmo no estado de São Paulo,
o mais rico do país, os laboratórios não têm recursos para pesquisar a presença
de glifosato na água, por exemplo. “Esses gargalos têm uma razão de ser, não surgem
por acaso, existem pela falta de vontade política de enfrentar o problema. E
essa falta de vontade política não é à toa, ocorre porque quem tem maior poder
político e econômico, são as pessoas ligadas a essas atividades”, afirma,
acrescentando que parte da competência da fiscalização cabe ao Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), cujos interesses estão em
sintonia com o agronegócio. “É preciso entender essa questão como de saúde
pública e criar mecanismos para os órgãos de controle não ficarem tão
permeáveis aos interesses econômicos e reféns do sucateamento administrativo e
operacional.”
Nexo causal
Apesar dos estudos científicos
demonstrarem, cada vez mais, a relação entre o uso de agrotóxico e o surgimento
de doenças, como, por exemplo, diversos tipos de câncer, o advogado e defensor
público Marcelo Novaes explica que nem sempre é fácil provar na Justiça essa
relação. “É difícil, são moléstias que podem surgir depois de muitos anos,
então é complicado”, disse. Apesar da dificuldade técnica de comprovar a
relação, há casos bem sucedidos em que a vítima trabalhava diretamente com o
produto e se conseguiu demonstrar o “nexo causal”, o que, para ele, é o
elemento chave no tema.
Pesquisas do Observatório de
Saúde Ambiental de São Paulo demonstram “de modo inequívoco”, o nexo causal
entre doenças crônicas, como o câncer, e o uso de agrotóxicos, assim como o
aumento do nascimento de bebês com má formação devido à exposição da mãe aos
agrotóxicos. No estado de São Paulo, cresce em 5% ao ano o número de bebês que
nascem com as mais variadas má formações congênitas.
“O importante é que existe a
comprovação do nexo causal epidemológico. Nas zonas em que mais se usa
agrotóxico, chega a triplicar o número de crianças nascidas com má formação e quadruplicar
os casos de câncer de fígado, de mama e próstata”, afirma.
Os dados são assustadores.
Enquanto no estado de São Paulo, a taxa de prevalência média de óbito de câncer
de cérebro é de 5,97% para cada 100 mil habitantes, na pequena Bento de Abreu é
de 18,44%, ou seja, 300% acima da taxa média. Em São João de Iracema o índice é
17,48% e, em Vista Alegre do Alto, chega a 16,67% de óbitos de câncer de
encéfalo para cada 100 mil habitantes.
No que se refere ao câncer de
fígado, o horror é semelhante. Se a taxa de prevalência média de óbitos no
estado de São Paulo é de 6,94% para cada 100 mil habitantes, em Marinópolis
esse índice é de estrondosos 33,78%, em Turmalina de 20,21%, e em Lucianópolis
de 19,94%.
No câncer de pulmão, o drama é o
mesmo. A taxa de prevalência média de morte no estado de São Paulo é de 20,7%
para cada 100 mil habitantes, mas na cidade de Iaras é de incríveis 48,56%, em
Luiz Antônio 44,71% e, em Marinópolis 42,95%.
Proibição e restrições
“O banimento dos já banidos é
imperioso. Você não pode autorizar a utilização de substâncias proibidas em
outros países, taxadas de mutagênicas e carcinogênicas, num país onde se tem a
comprovação do nexo causal,” defende Marcelo Novaes. Para ele, é preciso criar
alguns consensos, principalmente em relação ao uso de determinados agrotóxicos
já proibidos ou com restrições de uso nos principais mercados do exterior.
Em 2015, ele explica, 11,82% do
território do estado de São Paulo passou por pulverização área, incluindo áreas
de manancial de água. Como agravante, em 90% dos casos a pulverização é feita
em desacordo com as orientações da própria bula dos agrotóxicos.
“As pessoas precisam entender o
que está acontecendo e precisamos apontar algumas saídas básicas. O ideal seria
a mudança da matriz produtiva do país, mas isso não se faz a curto e médio
prazo. Mas precisamos dar alguns passos, como proibir princípios ativos já
banidos, como o paraquat, e restringir a utilização de alguns agrotóxicos, como
o glifosato, que já tem restrição de uso na Itália e na Califórnia, além de ser
seriamente combatido pela comunidade acadêmica.”
De acordo com o defensor público,
40% dos agrotóxicos usados em São Paulo são glifosato e 2,4-D – apontado em
estudos científicos como responsável por má formação congênita e tendo
restrições de uso na União Europeia, assim como a pulverização aérea,
extremamente regulamentada na Europa e com previsão de banimento total nos
próximos anos. “O acefato é proibido na Comunidade Européia e largamente
utilizado na produção de hortifrutigranjeiros no Brasil”, alerta Marcelo
Novaes, que termina por definir o atual modelo de agronegócio no Brasil como
uma “agronegociata”.
Por Luciano Velleda –
RBA
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