Não me sinto muito à vontade para falar sobre o caso da participação da pré-candidata Manuela D’Ávila no programa Roda Vida. Mesmo assim penso que tenho certa obrigação de fazê-lo. Não é segredo a ninguém que nutro grande simpatia pela deputada gaúcha e já digitei seu número em urnas eletrônicas algumas vezes. Como jornalista esse fato me constrange no momento de emitir opinião e, não me é assim tão fácil separar o profissional do pessoal nessa hora, até porque ambos tendem a concordar na análise: naquele espaço, em uma emissora de TV pública, pode se ter feito muita coisa, menos jornalismo.

Atualmente mediado por Ricardo Lessa, o programa que é homônimo a uma das mais emblemáticas canções de Chico Buarque, se apresenta com alcunhas de isenção e pluralidade que – na última segunda-feira – foi renegada pelo caráter panfletário de uma arena de gládio onde se propôs jogar – com o perdão da analogia – uma comunista aos leões. Não imaginavam que a jovem pré-candidata enfrentaria as feras de rosto altivo e prestaria um serviço de interesse público tão relevante ao desmascarar o não-jornalismo que contaminou o espaço antes digno.

Depois de mais de três décadas sendo considerado referência no formato de entrevista e já tendo recebido personalidades do tamanho de José Saramago e Darcy Ribeiro, Roda Viva afogou-se em um instante de mediocridade, machismo, misoginia, conservadorismo e parcialidade. O que vi foi a negação de tudo o que considero caro ao bom jornalismo. Para não me deter apenas nas próprias impressões, amparo-me na fala de três jornalistas referenciais – Luis Artur Ferrareto, Ricardo Kotscho e Nilson Lage – para discorrer sobre o assunto.

Ferrareto questiona a natureza do programa em uma postagem crítica em seu perfil no Facebook, explicando que a participação, entre os “entrevistadores” convidados para inquirir Manuela, de alguém como Fredereico D’Ávila – coordenador setorial da campanha de um dos adversários da pré-candidata comunista à corrida presidencial – converteu o espaço em um possível debate, porém sem ter a mediação adequada que garantisse condições equivalentes de manifestação. Recorto um trecho de sua avaliação:

“Como não se tratava de uma mesa-redonda, pendeu para a propaganda (ou, expressão mais precisa, tentativa de contrapropaganda). Um debate ocorre com mediação consistente e com ambos os lados em igualdade de condições. A valer dados que circulam nas redes, as falas de Manuela D’Ávila foram interrompidas cinco vezes mais do que as de candidatos masculinos em situação semelhante. Não poderia ser diferente em um programa no qual foi dado poder de entrevistador (ou de debatedor escamoteado) ao coordenador de campanha de um notório machista”1.

Kotscho, em seu blog, registrou revolta pelo que viu e afirmou-se envergonhado enquanto jornalista pelos colegas que compuseram parte da bancada: “Confesso que não consegui ver o programa até o fim, tamanha a minha revolta com o que estava assistindo. Na noite de segunda-feira, o novo Roda Viva, que tinha começado tão bem, desceu ao grau mais baixo do jornalismo de sarjeta, ao literalmente massacrar uma entrevistada”. Para ele, o que se viu foi uma tentativa de silenciamento, saltando aos olhos a diferença de tratamento dado a ela e aos demais participantes dos programas anteriores. “Raridade no mundo político, sem ter nenhuma denúncia de corrupção contra ela, queriam simplesmente negar a Manuela o direito de se candidatar e defender suas propostas para o país na série de entrevistas com os presidenciáveis”2.

Decano do jornalismo brasileiro e um dos teóricos mais respeitados no mundo quando a prática do noticiar é colocada em voga, Nilson Lage construiu uma frase-chave ao partilhar em sua rede um artigo de Ricardo Kotscho: “Em uma situação como essa, ao vivo, a única saída é responder ao insulto dizendo ao canalha que insulta que canalha ele é e que canalhas ele representa”3. Se para bons entendedores meia palavra basta, creio que um sentença crítica bem construída então, faz-se referência.

Há, claro, entre as vozes comprometidas com o interpretar político contrário ao que representa a pré-candidata e o seu partido, o velho PCdoB, quem critique o seu desempenho, desdenhe da resistência empenhada contra seus inquisidores e defenda o gládio que ali se observou e até minimize a prática do manterrupting (termo do inglês que designa casos em que a fala de uma mulher é atravessada pelas declarações de um homem). Vou em direção contrária, não apenas pela simpatia que tenho pela personalidade pública Manuela D’Ávila, como pelo olhar crítico que um jornalista e educador deve submeter sua análise. Mais uma vez concordando com o professor Ferraretto, que expressou no arremate de sua análise o contraponto que expressa como – neste caso – o feitiço virou-se contra o feiticeiro, citando como a falta de domínio do jornalismo somada à mais singela burrice de quem idealiza tal peça, se converte em algo que foi visivelmente “pensado como propaganda contrária à presidenciável comunista transforma-se, de fato, em forte arma de divulgação”.

Aqui arremato a minha analogia: a figura pública que se colocou ao centro da arena do Roda Viva trajando uma camiseta que desafia a “lutar como uma garota” devorou os leões que consigo dividiram o ato. Mesmo interrompida por inquiridores que mais pareciam inquisidores em 62 momentos, a “garota” honrou seus mais de 20 anos de vida pública ilibada e tornou-se gigante: naquela noite, foi muito maior que o monstro do não-jornalismo.



1 Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1938969179454924&set=a.579045005447355.1073741825.100000255811115&type=3&theater

2 Disponível em: https://www.balaiodokotscho.com.br/2018/06/26/roda-viva-massacra-manuela-davila-isso-e-jornalismo/

3 Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10156652460799674&id=561414673



Por Marcos Corbari – Jornalista, militante do MPA e integrante do coletivo Rede Soberania