ESTUDO EVIDENCIA DISCORDÂNCIA QUANTO AO USO DE VENENOS QUE PODE PREJUDICAR ACORDO COMERCIAL ENTRE UE E MERCOSUL
Lu Sudré
Nem todos os 497 princípios ativos autorizados no Brasil são passíveis de comparação com o quadro Europeu. Isso porque 65 deles referem-se a substâncias derivadas e outros 79 não estão classificados pelas agências de saúde de lá.
Dos 353 princípios que sobram, 194 também são liberados nos países da União Europeia; e 155 são proibidos (44% do total).
Entre a substâncias liberadas aqui e não autorizadas lá, 22 (ou 14,2%) são completamente banidas na Europa. Outros quatro princípios ainda estão sob análise, de acordo com o levantamento.
“Enquanto todos os países estão tentando ser mais restritivos aos agrotóxicos, no Brasil vamos na contramão. Estamos flexibilizando cada vez mais. Não foi à toa que a atual ministra Tereza Cristina, quando deputada, presidiu a comissão especial que aprovou o chamado PL do Veneno, que escancara o Brasil dos agrotóxicos”, analisa Teixeira, assessor parlamentar do PT na Câmara, sobre o Projeto de Lei (PL) 6.299/2002.
O “PL do Veneno” prevê que os órgãos de controle levem menos tempo para analisar e autorizar o uso de um agrotóxico importado. O projeto já foi aprovado em Comissão Especial da Câmara dos Deputados e agora será votado em Plenário.
Flexibilização desenfreada
Já a nova classificação de agrotóxicos adotada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no mês de julho, segundo o especialista, é evidência inquestionável sobre o abrandamento da legislação. A agência é a responsável por fiscalizar o uso dos agrotóxicos no país.
Até então regulada por uma legislação de 1989 que previa a existência de quatro categorias segundo o nível de perigo oferecido pelos pesticidas, agora a sistematização dos produtos passou a ter cinco divisões: extremamente tóxico, altamente tóxico, moderadamente tóxico, pouco tóxico e improvável de causar dano agudo.
Antes da mudança, 800 agrotóxicos, em média, pertenciam à categoria “extremamente tóxicos”, em um universo de cerca de 2300 – aproximadamente 34,7%. A nova tabela, divulgada pela Agência na semana passada, classifica apenas 43 como “extremamente tóxicos”, o que equivale a 2,2% dos 1924 produtos analisados.
“O que eles fazem é uma abordagem do tema a partir do interesse do fazendeiro, sem estar preocupado com o consumidor e muito menos com o meio ambiente”, comenta o ex-presidente da Abra, acrescentando que, em comparação com a Europa, o Brasil não tem o mesmo rigor em relação à fiscalização dos alimentos.
Pelas novas normas, agroquímicos antes considerados “altamente tóxicos”, podem passar para toxicidade moderada, enquanto os “pouco tóxicos” ficam liberados de classificação, ou seja, não apresentarão advertências no rótulo para o consumidor.
Na avaliação de Teixeira, a flexibilização tenta “relaxar” os padrões de preocupação da população. “Tanto o trabalhador rural quanto o fazendeiro irão aplicar abusivamente esse produto, acreditando que ele não tem a letalidade e periculosidade que tinha antes. Em um passe de mágica, com uma atitude burocrática, se reduz drasticamente o grau de toxicidade desses produtos”, ironiza.
A mudança na classificação da Anvisa favorece a política adotada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), em defesa de mais agrotóxicos: desde sua posse, 290 agrotóxicos já foram liberados no país. Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, critica a política adotada pelo governo.
“O discurso do agronegócio é de que seria necessário liberar novos agrotóxicos mais rápido para retirar os antigos e mais perigosos do mercado. O problema é que a realidade nos mostra um quadro totalmente diferente: as 290 liberações de agrotóxicos ocorridas neste ano são de substâncias antigas, sendo que 33% são proibidas na União Europeia”, denuncia Tygel, com base em outro levantamento, feito pela Campanha.
Ele explica que muitos produtos liberados no Brasil são banidos nos países de origem. O herbicida Atrazina, por exemplo, apesar de ser produzido pela Syngenta na Europa, teve seu registro cancelado no continente pela União Europeia.
Estudo publicado pela revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences em 2010, elaborado por pesquisadores da Universidade da Califórnia, comprovou que o agrotóxico é um potente disruptor endócrino, que desregula a produção de hormônios.
Além de contaminar as águas e afetar a saúde humana, o atrazina pode gerar transformações inesperadas no meio ambiente. A pesquisa em questão evidenciou que o herbicida levou à completa feminização de sapos-com-garras-africanos machos.
Segundo Tygel, para analisar a correlação de forças que pressionam a liberação de mais veneno, é preciso entender o papel que o Brasil ocupa no mercado internacional de produtos químicos. “Somos um imenso e lucrativo mercado, onde a regulação é fortemente influenciável pelos interesses das multinacionais agroquímicas. Após lucrar bastante com os agrotóxicos nos países de regulação mais restritiva, elas precisam seguir lucrando com as mesmas substâncias nos países de regulação mais frágil, até onde for possível”.
Como funciona na União Europeia?
O regulamento europeu que determina a autorização das substâncias ativas dos agrotóxicos foi aprovado em 2009, de acordo com o estudo de Teixeira. Substâncias nocivas à saúde humana, à saúde animal e às águas subterrâneas são vedadas.
Após uma longa tramitação com participação dos estados-membros e entidades da sociedade, as substâncias ativas são aprovadas por um período de 10 anos, podendo a aprovação ser revista a qualquer momento. Já as substâncias ativas classificadas como de baixo risco são aprovadas por 15 anos.
Caso tenha indicações de que um dos requisitos para a colocação no mercado deixou de ser cumprido, os estados podem rever a liberação a qualquer momento.
Impacto no acordo Mercosul x U.E
No último de junho deste ano, após 20 anos de negociação, os países do Mercosul e da União Europeia fecharam o acordo de livre comércio. Porém, o modo como os dois blocos tratam a questão dos pesticidas é um ponto sensível no tratado.
Isso porque a UE não abre mão da premissa de evitar o dano à saúde ou ao meio ambiente. Enquanto o princípio da precaução é regra na Europa, no Brasil é preciso comprovação de que o produto de fato é perigoso para que deixe de ser aplicado.
Países como Brasil e Estados Unidos se posicionaram contra as restrições europeias, alegando que a rigidez das normas podem causar dano ao comércio agrícola. Para o ex-presidente da Abra, o impasse entre os blocos pode incentivar um processo formal no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou até mesmo levar a UE a impor bloqueios comerciais.
“A União Europeia, de forma bastante apropriada, colocou que a qualquer tempo pode suspender importações alimentícias do Brasil, se suspeitar que o princípio da precaução na Europa está sendo afetado. Ou seja: Se há produtos com grau de contaminação por agrotóxicos com limite além do tolerado pela União Europeia, ela irá bloquear essas importações”, avalia Teixeira.
“Se os caras aqui acharem que vão poder envenenar a comida, as commodities agrícolas e vender facilmente para a Europa, não vão. Para quem tem a pretensão de liderança do comércio mundial, isso é um tiro no pé”, comenta, adicionando que uma grande reação como essa poderia frear a ofensiva do governo Bolsonaro pela ampla flexibilização dos agrotóxicos.
Na opinião de Teixeira, eliminar a competitividade para crescer na produção de commodities agrícolas é o grande objetivo da bancada ruralista. Ele afirma que, ainda que as subvenções na área da agricultura sejam grandes no Brasil, é menor em comparação com o Estados Unidos.
Neste cenário, para compensar a diferença, a articulação dos ruralistas visa reduzir o custo com os venenos. “No caso específico dos agrotóxicos, eles querem aumentar abusivamente a oferta para reduzir preço na busca pela competitividade. É isso que está por trás. Se há uma lógica econômica, é esse ponto que explica. São pessoas, via de regra, que não têm nenhum compromisso de saúde pública ou meio ambiente”.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), em 2016 o Brasil terminou o ano com uma fatia de 5,7% da produção de commodities mundial, abaixo apenas dos Estados Unidos, com 11%, e da Europa, com 41%.
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