“Não sou eu que vivo no passado, é o passado que vive em mim”.
(Paulinho da Viola.)


Neste 13 de maio de 2019 a ‘abolição da escravatura’ no Brasil, completa 131 anos, é preciso lembrar que o país foi o último no continente americano a acabar com o regime escravocrata. A abolição da escravatura tornou-se possível pelo protagonismo de negros e negras que organizam as frentes de resistência, por meio de rebeliões e da formação de quilombos, levando os conservadores a temerem uma revolução, como a que ocorreu no Haiti (1791), primeiro país americano a acabar com o sistema escravocrata. Assim, no seio da sociedade brasileira do período imperial entraram em choque duas correntes: a abolicionista, inspirada nas sementes de liberdades plantadas pelas revoluções Francesa e Industrial, familiarizados com as teorias dos economistas clássicos e acompanhada de debates na Inglaterra acerca do sistema escravagista; e a conservadora, que defendia a escravidão como vital para manutenção econômica dos latifúndios.
Ignorando o passado escravocrata do país e, buscando sustentar a falsa ideia de democracia racial, o presidente Jair Bolsonaro afirmou em uma entrevista recente, a apresentadora Luciana Gimenez, que o “racismo é coisa rara no Brasil”. Como presidente do Brasil, país com maior população negra fora do continente africano, Bolsonaro deveria reconhecer que a formação do país iniciou em um terreno marcado por desigualdades, violências e discriminações, onde os afrodescendentes sofreram e sofrem extrema opressão e genocídio. Mas ele prefere ignorar, assim como ignora que já foi condenado por racismo por episódio em 2011 quando afirmou: “um afrodescendente mais leve lá [em um quilombo] pesa sete arrobas [medida usada para pesar gado]. Não fazem nada. Nem para procriador, ele serve mais”. O senhor presidente foi condenado pela sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) pelos comentários racistas e homofóbicos, ditos no ano de 2011. Com a decisão judicial, o presidente irá pagar R$ 150 mil para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDDD), do Ministério da Justiça.
Jair Bolsonaro ignora também que no Brasil, a cada 23 minutos, um homem negro é morto e apenas 12,8% dos jovens negros de 18 a 24 anos conseguem entrar em uma faculdade, segundo dados do IBGE de 2015. De acordo com um relatório do Ministério da Justiça do mesmo ano, 68,8% das mulheres que foram vítimas de femicídio no país são negras. Além disso, o número de jovens negros que cometem suicídio só aumenta. A cada dez jovens que tiraram a própria vida, seis são afrodescendentes, segundo levantamento Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília. Cabe ainda lembrar que a grande massa encarcerada no Brasil é negra, onde entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Vale lembrar que 53,63% da população brasileira têm essa característica. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na população em geral.
Não senhor presidente, o racismo não é coisa rara, oxalá assim o fosse. O racismo no Brasil é estrutural, está na base de nossa formação. Segundo, o intelectual negro, Silvio Almeida “o racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida”. O racismo, portanto, é apresentado como decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, onde a raça é um elemento fundamental para a compreensão do Estado, do direito e da economia contemporâneas. Para melhor compreendermos o que é racismo estrutural precisamos diferenciar racismo de discriminação, onde o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertencem. Discriminação é dar tratamento diferenciado em razão da raça.
Silvio Almeida argumenta que o racismo pode ser definido a partir de três concepções. A individualista, pela qual o racismo se apresenta como uma deficiência patológica, decorrente de preconceitos; institucional, pela qual se conferem privilégios e desvantagens a determinados grupos em razão da raça, normalizando estes atos, por meio do poder e da dominação; e estrutural que, diante do modo “normal” com que o racismo está presente nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas, faz com que a responsabilização individual e institucional por atos racista não extirpem a reprodução da desigualdade racial.
Retomando a entrevista de Jair Bolsonaro a Luciana Gimenez, é preciso refletir sobre o embasamento usado por ele sobre suas afirmações: “o tempo todo tentam jogar negro contra branco, homo contra hétero, pai contra filho. Desculpe o linguajar, mas isso já encheu o saco”. De acordo com Silvio Almeida a negação do racismo e a evolução do conceito de democracia racial se aperfeiçoaram com o conceito de meritocracia, segundo o qual os negros que se esforçarem poderão usufruir de direitos iguais os dos brancos. Tal conceito, na prática, apenas serviu e serve para a manutenção da desigualdade entre brancos e negros. Embora desde o final do século XX a teoria da democracia racial tenha sido denunciada como uma falácia, o autor aponta que o mito da democracia racial é fortemente difundido, pois serve de argumento para apontar as políticas de combate ao racismo como desnecessárias, com habituais alegações de que todas as pessoas possuem as mesmas oportunidades.
Para a filósofa, escritora e uma das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra e homenageada da edição 2019 da FestiPoa Literária, Sueli Carneiro é necessária a criação de um novo pacto racial e de gênero no Brasil, que desaloje todas as hierarquias produzidas pelo racismo e pelo sexismo. “A valorização da diversidade humana torna-se um pré-requisito para a reconciliação de todos os seres humanos. Se podemos educar as pessoas para discriminar e oprimir será possível fazê-las aprender a respeitar, acolher e se enriquecer com as diferenças raciais étnicas e culturais. Este é o abcesso do novo pacto racial e de gênero que desejamos. Um país que foi capaz de criar a mais bela fábula de relações raciais, que é o nosso mito da democracia racial, talvez seja também capaz de um dia torná-lo realidade”, afirmou.
Sueli também afirmou que sua geração teve um papel fundamental na desmistificação da democracia racial e em mostrar que era uma falácia e uma hipocrisia. Segundo ela, ao fazer isso, sua geração rompeu com o pacto e a etiqueta social que, até então, governava as relações raciais no Brasil. Segundo a escritora, havia um combinado na sociedade brasileira. As pessoas brancas racistas nos diziam ‘o Brasil é uma democracia racial, nós vamos dizer isso e vocês negros vão fazer de conta que acreditam. Enquanto esse pacto prevalecer nós não teremos problemas’. E quando a gente nega isso e começa a exigir políticas de ação afirmativa como medidas de correção de redução de desigualdades o pacto se rompe”, afirmou. Sueli usou como exemplo para isso a criação de cotas raciais nas universidades brasileiras, as cotas tiraram os racistas do armário e os organizaram. Isso também fez emergir toda violência e crueldade que esse racismo tem.
Segundo Sueli, há uma absoluta e crescente violência racial, que se manifesta de diferentes formas, e que tem a sua forma mais extrema no genocídio de jovens negros. De acordo com a filósofa, esse não era o país que sua geração pretendia entregar para as gerações futuras. “Nós até acreditávamos há alguns poucos anos atrás que estávamos adentrando um círculo virtuoso de enfrentamento das desigualdades raciais, que nos permitiria construir uma nação mais justa e mais igualitária. Essa é a promessa que a minha geração fez para a de vocês. Falhamos”. Quando questionada sobre o papel da filosofia e da sociologia no cenário atual do país, no momento em que o presidente Jair Bolsonaro fala em acabar com os recursos públicos para cursos na área. Respondeu, definindo a filosofia como exercício da revolução crítica, que em tempos de obscurantismo, precisa ser suprimida. “É sempre assim. E nesses tempos, a resistência tem que preservá-la. Nós vamos continuar filosofando e ensinando filosofia, problematizando, estudando e estimulando o pensamento crítico da sociedade brasileira. Seja no espaço público, seja no subterrâneo da liberdade”, afirma a filósofa.
A luta da negritude por libertação ainda não chegou ao fim, Sueli e Silvio são alguns dos lutadores e lutadoras que dedicam a vida a causa da libertação das populações negras, são alguns dos Zumbis e Dandaras, Luizas e Luizes, que não cedem a pressões discriminatórias, políticas de deslegitimação, invisibilização e extermínio promovidas seja pelo Estado ou por organizações associadas ao mercado que mercantiliza a vida da negritude como outrora já foi mercantilizada pelo sistema escravocrata.
“…Chega de festejar a desvantagem
E permitir que desgatem a nossa imagem
Descendente negro atual meu nome é Brown
Não sou complexado e tal
Apenas Racional
É a verdade mais pura
Postura definitiva
A juventude negra
Agora tem voz ativa…”
(Trecho da música Voz Ativa, Racionais Mc’s)

Referências:


Michele Corrêa
Negra, Graduanda em Filosofia na UFPel,
 Militante da Pastoral da Juventude (PJ) e
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)